ADI 5527 e bloqueios: um problema na redação da lei ou na sua interpretação?
Por Felipe Mansur
A sociedade brasileira tem se deparado com inúmeras decisões que determinam o bloqueio ou até mesmo a suspensão de aplicativos e sites na Internet. Entre elas, estão as que levaram à suspensão do aplicativo Whatsapp, que já ocorreu três vezes, afetando diretamente, conforme dados da imprensa, 100 milhões de pessoas, o equivalente a 48,91% da população brasileira.
Já surgiram no Judiciário algumas tentativas de coibir novas decisões deste tipo. Dentre elas, está a ADPF 403 (veja análise aqui), que ainda tramita no STF e busca a declaração de inconstitucionalidade de decisões de bloqueio do WhatsApp, por violação do direito à comunicação e lesão desproporcional a milhões de consumidores. Outra é a ADI 5527, que ao invés de discutir decisões de bloqueios envolvendo o WhatsApp em si, contesta a própria constitucionalidade de artigos do Marco Civil da Internet que estariam sendo utilizados para fundamentar bloqueios.
A propositura dessas duas ações revela uma questão-chave na discussão sobre bloqueios no Brasil: o problema está no que diz e prevê a lei ou na forma como ela está sendo aplicada? Conforme se verá adiante, enquanto na Petição Inicial da ADI 5527 e em alguns amici curiae há a discussão quanto ao texto legal do Marco Civil, há, em contraposição, um amicus curiae que busca demonstrar que a inconstitucionalidade está na aplicação do Marco Civil, que vem sendo feita de forma errônea por parte dos juízes, aproximando-se da abordagem pretendida na ADPF 403.
O QUE SE ARGUMENTA NA ADI 5527
Na Petição Inicial que originou a ADI 5527, o Partido da República (PR) requer a suspensão imediata e, ao final, a declaração de inconstitucionalidade dos incisos III e IV do art. 12 da Lei n. 12.965/14 (Marco Civil), que prevê sanções como “suspensão” e “proibição” a provedores, ao lado da interpretação conforme do art. 10, §2º, que dispõe sobre a disponibilização de conteúdo de mensagens mediante ordem judicial:
Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.
2o O conteúdo das comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, respeitado o disposto nos incisos II e III do art. 7o.
Art. 12. Sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa:
III – suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art 11.
Pode-se dizer que o partido vê uma certa conexão causal entre essas previsões legais – lidas de forma combinada, e as ordens de bloqueio. Elas parecem autorizar a suspensão das atividades de serviços de troca de mensagens pela Internet, quando a empresa responsável pelo aplicativo se negasse a disponibilizar à autoridade judiciária o conteúdo de mensagens privadas trocadas por usuários submetidos a investigação criminal – ou ao menos dão lugar a uma interpretação neste sentido, como teria ocorrido nos casos WhatsApp (veja aqui a análise do terceiro bloqueio e aqui a análise do quarto bloqueio).
Diante disso, o PR pretende demonstrar em sua ação o que seria uma patente inconstitucionalidade do Marco Civil da Internet. Ao construir sua argumentação, primeiro discute o caráter de aplicações de Internet. Devido à constante utilização de aplicativos para a comunicação, através de mensagens, áudios, vídeos e fotos, no dia-a-dia das pessoas, os autores entendem que a interpretação constitucionalmente adequada é aquela que categoriza os aplicativos de troca de mensagens pela internet como comunicação telefônica, de maneira que a quebra de sigilo somente pode ser autorizada por ordem judicial para fins de persecução penal.
Dito isso, o PR passa a destacar a centralidade de aplicações de mensagens na vida cotidiana. Argumenta-se que os aplicativos de troca de mensagem são um serviço prestado por particular, mas que deve receber proteção do Estado em razão do interesse da sociedade na continuidade de suas atividades.
A seguir, os autores recorrem a dois artigos que tutelam a livre comunicação no ordenamento jurídico brasileiro: o art. 5º, IX, da Carta da República: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” e o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que diz que o direito à liberdade de pensamento e de expressão inclui a liberdade de “procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha”.
A partir daí, os autores concluem que o art. 12, III e IV, da Lei n. 12.965/14, ao possibilitar a suspensão temporária e a proibição dos serviços de aplicativos de troca de mensagens em razão do descumprimento de ordens judiciais de quebra de sigilo de informações, viola os princípios da liberdade de comunicação e da continuidade do serviço. Devem, por isso, ser declarados inconstitucionais.
Além de contestar a constitucionalidade do fundamento jurídico dos bloqueios, o PR também ressalta o impacto que eles produzem para justificar a sua posição. De um lado, argumenta que as penalidades previstas no art. 12, III e IV, da Lei n. 12.965/14, ao atingirem pessoas estranhas aos fatos apenados, violariam os princípios da intranscendência e da individualização da pena. De outro, traz a constatação de que um grande aumento de pessoas se inscreveram no aplicativo de mensagem Telegram posteriormente aos bloqueios do Whatsapp. Para o partido, a perda ou a conquista de usuários de um ou outro aplicativo foi resultante não da melhor ou pior qualidade no oferecimento de serviços de comunicação, mas sim de fator exógeno à dinâmica concorrencial do mercado. Ou seja, a demanda por esse produto passou a ser ditada pela atuação do Poder Judiciário, não resultando, pois, da livre concorrência entre os atores econômicos, ferindo o que está disposto no artigo 170 da Constituição Federal.
O QUE DIZEM OUTRAS PARTES E OS AMICI CURIAE
Para além do PR, outras figuras também já manifestaram suas opiniões dos autos da ADI 2257. Como acontece na ADPF 403, apesar de adotarem também a posição crítica aos bloqueios, as suas opiniões tem diversas nuances relevantes para o resultado final da ação.
A ADI 5527 já recebeu manifestações da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e da Advocacia-Geral da União. Tais entes não enxergam uma inconstitucionalidade no Marco Civil da Internet enquanto ato normativo. A AGU e o Senado Federal acolhem e citam declaração do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) no sentido de que o art. 12 prevê sanções para descumprimento de normas de proteção de registros, dados pessoais e comunicações privadas. Também não se poderia suspender ou proibir – bloquear – completamente serviços; apenas determinadas atividades ilegais. Assim, para a instituição, o problema está mesmo no âmbito da aplicação da lei – nas próprias decisões de bloqueio já ordenadas, que teriam interpretado inadequadamente o Marco Civil. Ressalta, entretanto, que não há nenhum problema na previsão abstrata das sanções de suspensão e proibição de atividades de provedores de Internet: declará-las inconstitucionais importaria em sobrepor interesses econômicos de provedores a direitos fundamentais de usuários.
O Instituto Beta para Democracia e Internet – IBIDEM, em parceria com os pesquisadores do Laboratório de Pesquisa, Direito Privado e Internet da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – LAPIN, foi a primeira entidade a ingressar com o amicus curiae. Diferentemente do que foi alegado na petição inicial, pede-se que a ADI não seja reconhecida. Para tal, foi alegado que o Marco Civil da Internet não permitia as interpretações feitas pelos juízes nos casos de bloqueios. Ressaltaram também que havia decisões de bloqueio anteriores ao Marco Civil, ou mesmo decisões posteriores mas que se utilizavam do Código de Processo Civil para embasar os bloqueios. Ou seja, independentemente do Marco Civil, há a possibilidade de um juiz embasar uma decisão de bloqueio. Dessa forma, concluíram que não haveria qualquer infração à Constituição Federal no texto do Marco Civil da Internet, constituindo um problema na esfera da aplicação da lei, o que não justifica os pedidos da ADI.
Outra instituição que ingressou como amicus curiae é o ITS Rio. Os autores adotam posição semelhante à da AGU: afirmam que as mencionadas sanções do artigo 12 não autorizam o bloqueio de sites, mas apenas a suspensão ou proibição “das atividades que envolvam os atos previstos no artigo 11”, que são, “a coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros de dados pessoais ou de comunicações”. Em outras palavras, a interpretação de que o artigo autorizaria bloqueios completos de aplicações estaria incorreta e deve ser declarada inconstitucional. Ao lado disso, a instituição nega a existência de embasamento para suspensões por descumprimento de ordem judicial, como o que teria ensejado as ordens de bloqueio do WhatsApp. Para a ITS, as sanções do art. 12 só poderiam ser aplicadas quando houvesse desrespeito às normas de proteção da privacidade e proteção de dados dos arts. 10 e 11. Só haveria a possibilidade de invocar as sanções previstas no artigo 12 para a hipótese de algum registro de conexão ou de acesso a aplicações ser disponibilizado sem autorização judicial, por exemplo, mas nunca como sancionamento para o descumprimento de decisão judicial.
Na sua petição de amicus curiae, a Frente Parlamentar pela Internet Livre e Sem Limites concorda com a tese de que as sanções do artigo 12 devem ser impostas às empresas que não agirem conforme decisões judiciais é errada. Daí, argumenta que o artigo 12 está inserido em seção da lei que visa a garantir o respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem de usuários. Seguindo a linha do ITS, argumenta que as sanções previstas neste artigo seriam aplicáveis somente aos casos que envolvam atos previstos no art. 11, vale dizer, somente que violem a privacidade, a proteção de dados pessoais e o sigilo das comunicações privadas.
Saindo de uma mera discussão sobre bloqueios e ingressando numa discussão sobre a constitucionalidade de deveres de guarda de dados, a Frente também refuta a interpretação do art. 10 no sentido de que ele obrigaria as empresas provedoras de aplicações virtuais a armazenarem todos os dados, registros de conexão e de conteúdo. O grupo argumenta que a Constituição Federal prevê que se mantenham em sigilo as diversas modalidades de comunicação realizadas entre pessoas privadas, a fim de impedir que o Estado ou outros particulares tenham livre acesso a informações atinentes à esfera íntima dos cidadãos, o que seria absolutamente contrário à ordem democrática, além de prejudicar as empresas devido aos grandes custos para que se armazene todos esses dados.
PRÓXIMOS ANDAMENTOS
Como esperado, o julgamento da ADPF 403 impactou na análise da ADI 5527, uma vez que a discussão sobre a constitucionalidade das ordens de bloqueio do WhatsApp (em pauta na ADPF) suscita também a questão central da ADI: como se interpretam e devem ser interpretadas as sanções de “suspensão” e “proibição” no Marco Civil da Internet.
Dessa forma, em recente despacho, Edson Fachin e Rosa Werber, relatores das ações, decidiram pela convocação conjunta de uma audiência pública para a ADI 5527 e a ADPF 403. Eles tomaram essa decisão com o objetivo de tornar o espaço compartilhado e colegiado na maior medida possível, seguindo os arts. 21, XVII, e 154, III, do Regimento Interno do STF.