Bloqueios do WhatsApp têm base legal? As disputas interpretativas e seus defensores
Por Jacqueline de Souza Abreu
Há base legal para as determinações de bloqueio do WhatsApp na legislação brasileira? Esse post pretende mapear as diferentes argumentações defendidas nesse debate. Existem duas ações constitucionais em que o Supremo Tribunal Federal (discutidas no bloqueios.info aqui e aqui) será chamado a discutir se bloqueios são compatíveis com o direito fundamental à liberdade de comunicação. Assumindo que muitos dos juízes da Corte vão se engajar em uma discussão sobre “proporcionalidade”, esse texto discute um dos passos necessários dessa análise constitucional: se assumirmos que bloqueios limitam um direito fundamental, há (pelo menos) base legal para tanto?
As disputas interpretativas
Grande parte da discussão sobre o suporte jurídico de ordens de bloqueio do WhatsApp se dá em torno do art. 12, III do Marco Civil da Internet, que prevê a “suspensão temporária das atividades […]” como sanção a infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 do MCI. Esse artigo oferece a base legal necessária para a sanção de bloqueios do WhatsApp?
Art. 12. Sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa:
I – advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas;
II – multa de até 10% (dez por cento) do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, considerados a condição econômica do infrator e o princípio da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção;
III – suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11; ou
IV – proibição de exercício das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11.
Parágrafo único. Tratando-se de empresa estrangeira, responde solidariamente pelo pagamento da multa de que trata o caput sua filial, sucursal, escritório ou estabelecimento situado no País.
Da leitura do art. 12 se depreende que:
- (i) Para que as sanções previstas no art. 12 do MCI sejam cabíveis, é necessária a existência de “infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11”;
- (ii) As sanções de “suspensão temporária” ou “proibição” se referem às atividades que envolvam “operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet”, como mencionado no art. 11.
Há controvérsias interpretativas em relação a cada um destes pontos.
Que infrações à legislação brasileira engatilham bloqueios?
Quanto à (i), discute-se que tipo de infrações acionam as sanções do art. 12. O MCI é claro na sua referência aos arts. 10 e 11. O descumprimento de ordem judicial de entrega de dados de usuários, causa das ordens de bloqueio nos casos do WhatsApp, é motivo suficiente para ordem de bloqueio?
A empresa WhatsApp Inc., a Frente Parlamentar Pela Internet Livre e sem Limites, o Instituto de Tecnologia e Sociedade, o Comitê Gestor da Internet no Brasil, a Advocacia-Geral da União e o Senado Federal, por exemplo, defendem que as sanções só são aplicáveis quando normas de proteção de dados pessoais e da privacidade estabelecidas pelos arts. 10 e 11 são desrespeitadas. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o Instituto Beta: Internet e Democracia e o Laboratório de Pesquisa Direito Privado e Internet da UnB também tem opinião semelhante. Na linha desta argumentação, como no caso do WhatsApp a empresa não violou normas de privacidade e proteção de dados, a sanção não é pertinente.
Em contraposição, estão aqueles – principalmente os juízes, como no terceiro caso de bloqueio do WhatsApp – que veem qualquer violação a alguma legislação brasileira como suficiente para provocar a aplicação das sanções do art. 12. Citam o art. 11, o qual dispõe que em qualquer operação de tratamento de dados “deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção de dados e ao sigilo das comunicações […]”. Também se aponta ao art. 10, §2º, pelo qual o “conteúdo de comunicações privadas só poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial”; como o WhatsApp não entrega dados mesmo mediante ordem judicial, haveria violação da legislação brasileira. As sanções do art. 12 seriam, nesse sentido, cabíveis. Alguns delegados de polícia e até o Ministério da Justiça estão desse mesmo lado da controvérsia: a previsão de suspensão temporária no Marco Civil seria clara em oferecer suporte jurídico à medida contra a empresa.
É admitido o bloqueio integral de aplicativos?
Quanto a (ii), a divergência está na extensão da “suspensão temporária” do inciso III (ou mesmo da “proibição” do inciso IV) ali prevista: admite o bloqueio completo de aplicação ou apenas de certas atividades? O WhatsApp pode ser suspenso completamente ou apenas a atividade que violaria a legislação brasileira?
A linguagem se refere a “atividades que envolvam os atos previstos no art. 11”. Em face disso, a maioria argumenta que o art. 12 autoriza a suspensão de certas atividades de “coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet”, as quais estejam em desacordo com as normas de proteção de dados e da privacidade do MCI. A Frente Parlamentar Pela Internet Livre e sem Limites, o Instituto de Tecnologia e Sociedade, o Comitê Gestor da Internet no Brasil, a Advocacia-Geral da União (seguindo o CGI), o Senado Federal (também seguindo o CGI) e a PROTESTE argumentam neste sentido.
Outros afirmam que o bloqueio (a suspensão completa) é admissível pela legislação brasileira. No caso do WhatsApp, a suspensão de atividade de “coleta, armazenamento, guarda e tratamento …de comunicações”, teria como implicação de fato a necessidade de bloqueio do aplicativo. É essa a opinião de Francisco Brito Cruz, do InternetLab, e de Rafael Maciel, da Comissão de Direito Digital da OAB/GO, por exemplo. Juntam-se a eles, por óbvio, os juízes que já ordenaram bloqueio com base no art. 12 e os representantes de polícia que fizeram tal pedido.
Há outros embasamentos para ordens de bloqueio?
Seja o que for decidido pelo STF acerca da interpretação a ser dada pelo Marco Civil da Internet, resta ainda uma terceira pergunta: as ordens de bloqueios do WhatsApp encontram fundamento em outros dispositivos da legislação brasileira?
A questão é se o art. 12, III estabelece um regime único de sanções a provedores de aplicações no Brasil ou se outros dispositivos também podem ser invocados como fundamentação jurídica de sanções. Referência comum é feita, por juízes e comentadores, nos casos do WhatsApp, ao “poder geral de cautela”, que o Código de Processo Civil de 1973 (art. 461, §1º), o Novo Código de Processo Civil (arts. 139, IV e 536, §3º) e (agravando o grau da controvérsia) até o Código de Processo Penal (art. 3º do CPP, em conjugação com o art. 297 do CPC) reservariam a juízes para fazer valer as suas decisões. Em sua manifestação na ADPF 403, a empresa WhatsApp Inc. contesta essa referência, afirmando que o MCI é uma norma especial que regula situações específicas “aplicáveis a relações na Internet”; também contesta que juízes criminais em processos criminais possam basear suas decisões no CPC.
A necessidade de um tratamento sofisticado
No teste de proporcionalidade, a verificação da existência de base legal clara, precisa em sua hipótese, e bem delineada em sua consequência, é imprescindível para checar se a limitação ao direito fundamental por ela implicada respeita o princípio da legalidade, fundamental a todo Estado democrático de Direito. Como visto, as disputas interpretativas sobre esse tema são acirradas, o que apenas aumenta as expectativas em torno da ADI 5527 e da ADPF 403, quando o Supremo se manifestará sobre a problemática dos bloqueios nos casos envolvendo o WhatsApp. Ao mesmo tempo, o legislativo também tem se mexido para lidar o tema (veja este post). Espera-se dos envolvidos a análise sofisticada que todo tema espinhoso e sensível, como o de bloqueios, merece. Que prevaleça a argumentação melhor fundamentada à luz do ordenamento jurídico brasileiro.