“Bloqueios” que não são bem bloqueios: os casos Lulu, Consulta Sócio e Youse
Por Paula Pécora de Barros e Jacqueline de Souza Abreu
A plataforma bloqueios.info monitora processos judiciais que levaram, puderam ou podem levar ao bloqueio de aplicações da Internet (páginas da web ou aplicativos) no Brasil. Para efeitos de catalogação e discussão no site, consideramos “bloqueios” casos em que autoridades brasileiras, como juízes, determinam que intermediários – como empresas provedoras de acesso à Internet e empresas provedoras de lojas de aplicativos – restrinjam integralmente a disponibilidade de acesso a conteúdos, informações e serviços ofertados por aplicações de Internet, como websites e aplicativos.
Esse post é para falar de algumas medidas restritivas que foram chamados de “bloqueios” na imprensa e mesmo em decisões judiciais, mas que não são contemplados pelo nosso recorte. Dentre eles, destacamos as disputas judiciais em torno do aplicativo Lulu, do site consultasocio.com e da empresa de seguros Youse. Elas dão a oportunidade de lançar luz a outros tipos de “bloqueio” – aqueles específicos a certos perfis, páginas ou conteúdos, e que não fazem parte da documentação do bloqueios.info. É uma oportunidade para elucidarmos melhor o que monitoramos.
O caso Lulu
Em 2013, a Justiça brasileira impôs restrições ao aplicativo Lulu, que ficou conhecido principalmente entre mulheres ao permiti-las avaliar anonimamente características de seus amigos do Facebook. Ao se cadastrar no aplicativo, as informações de amizade eram retiradas da rede social, criando perfis de avaliação a todos os seus amigos do sexo masculino. Somente mulheres poderiam se cadastrar no aplicativo, e as informações retiradas de seus contatos se dava independentemente do consentimento dos usuários, o simples fato de os homens estarem cadastrados no Facebook já permitia que eles fossem avaliados, não sendo necessária sua adesão ao Lulu. As avaliações se davam de forma anônima e ficavam disponíveis somente às outras usuárias do aplicativo.
A proposta e forma de funcionamento do aplicativo logo alcançou grande popularidade, gerando também muita polêmica. Com a controvérsia gerada, o Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT) ajuizou Ação Civil Pública contra o Facebook Brasil e a Lulu alegando violação aos direitos de personalidade e de informação. Segundo o MPDFT, só poderia haver compartilhamento de dados entre Facebook e Lulu se existisse consentimento prévio, específico e informado do usuário afetado.
O magistrado da 1ª Vara Cível da Circunscrição Judiciária de Brasília – DF indeferiu a tutela antecipada pedida, por considerar que a proteção poderia ser concedida apenas mediante pedido de cada uma das pessoas que se sentissem concretamente violadas, não sendo, portanto, o Ministério Público legítimo para tal pedido. Agravada a decisão pelo MPDFT, a relatora da 6ª Turma do Tribunal de Justiça do Distrito Federal acolheu o agravo, assim como o pedido de restrição ao aplicativo, identificando violações aos direitos da personalidade e à norma constitucional de vedação ao anonimato, contida no art. 5º, IV/CF para conceder a tutela antecipada do agravo. Determinou assim a exclusão imediata dos dados e imagens de qualquer pessoa que não tivesse expressado seu consentimento prévio, específico e informado para ser colocada para avaliação no aplicativo Lulu, a vedação à avaliação anônima e a conservação dos dados das avaliações no aplicativo, disponibilizada apenas aos legitimamente interessados. Tudo isso fez com que a decisão fosse interpretada como uma espécie de “bloqueio”.
Após toda a polêmica, em 24/12/2013 o App Lulu saiu do ar por decisão da empresa, sendo lançado novamente apenas em 20/07/2015. Na nova versão, diversas alterações foram feitas, e segundo a empresa, com a situação jurídica regularizada, permitindo acesso aos homens a suas avaliações e o app não mais seria vinculado ao Facebook. Não foram identificadas diligências posteriores contra o aplicativo na Justiça, o qual se encontra no momento fora do ar.
O caso Consulta Sócio
O site consultasocio.com foi parar no judiciário em junho de 2016. A proposta do Consulta Sócio era facilitar o acesso a informações sobre empresas e seus respectivos sócios, a partir de bancos de dados que, segundo o site, estão disponíveis ao público.
A ação que levou ao dito “bloqueio” foi ingressada por sete integrantes da família Buffara em face da Privacy Protection Service Inc., administradora do domínio do site, alegando que ele divulgava dados pessoais dos requerentes e das empresas que compunham, sem a autorização dos mesmos. Pediam tutela antecipada para que as empresas de Backbone, Serviço Móvel Pessoal e Serviço Telefônico Fixo Comutável criassem obstáculos “capazes de inviabilizar, até o julgamento da demanda, o acesso ao site (a exemplo do que já foi determinado judicialmente em relação a outro site similar, tudosobretodos.se) ou, alternativamente, a quaisquer informações pessoais dos demandantes” no site consultasocio.com.
No momento da decisão, o juiz Marcos Vinícius da Rocha Loures Demchuk da 24ª Vara Cível de Curitiba verificou que o site permitia efetivamente descobrir “pela busca simples de nome de determinada pessoa, se esta integra o quadro societário de alguma empresa, quais as sociedades que integra, qual sua participação societária, o ramo de atividade exercido, qual a razão social e o nome fantasia, qual o capital social, quem são os demais sócios, qual o CNPJ da empresa, e ainda, o endereço, telefone e e-mail.”
Com tal constatação, deferiu parcialmente o pedido de tutela antecipada dos membros da família Buffara, ordenando o “bloqueio” das informações dos requerentes no site consultasocio.com, alegando que as informações fornecidas pelo site violavam direito fundamental à intimidade, vida privada, honra e imagem, de acordo com o artigo 5º, X, da Constituição Federal, bem como a disciplina estabelecida nas Leis 12.965/2014, 12.414/2011, e 12.527/2011, referentes à utilização de informações cadastrais e restrição de acesso às informações relativas à vida privada sem consentimento. Tratou-se de um caso clássico de remoção de conteúdo.
O caso Youse
A Youse Caixa Seguradora é uma Marca Registrada e uma Plataforma de Vendas de Seguros Online da Caixa Seguradora, a qual oferece serviços online de contratação de seguros de modo facilitado, com o intermédio da FPC PAR Corretora de Seguros S/A. O desenvolvimento de seus negócios trouxe, no entanto, algumas discussões no âmbito judiciário e chegou a levar ao “bloqueio” temporário da plataforma, levado a cabo pela própria empresa diante de determinação judicial.
A Federação Nacional dos Corretores de Seguros Privados, de Resseguros, de Capitalização, de Previdência Privada e das Empresas Corretoras de Seguros e Resseguros (FENACOR), com base na alegação de que a Youse não possui autorização regulatória e para comercialização de seguros privados, segundo arts. 31 e 37 do Código de Defesa do Consumidor, pediu liminarmente a sustação das atividades da Youse e a suspensão do processo administrativo nº 15414.001677/2016-46, instaurado pela Youse para autorização de constituição dessa como Seguradora na Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), autarquia federal vinculada ao Ministério da Fazenda que faz a fiscalização e normatização do funcionamento das seguradoras.
O juiz Alberto Nogueira Júnior da 10ª Vara Federal do Rio de Janeiro identificou funcionamento irregular da Youse e concedeu alguns dos pedidos. Por considerar que a Youse se apresentava como uma empresa sem o devido registro na SUSEP e que tinha como propaganda a “abolição” do corretor de seguros, enganando o consumidor, determinou a suspensão das atividades da Youse Seguradora, “sob pena de multa de dez mil reais por dia de mora, sem prejuízo de ser ordenado o encerramento das atividades de Youse Seguradora pela Força Pública Federal”. Por outro lado, verificando que a FENACOR não era titular de qualquer direito subjetivo no processo administrativo, ela não poderia pretender intervir sobre ele.
Após pedido de reconsideração interposto pela seguradora, o mesmo magistrado constatou que o sítio eletrônico da Youse passara a apresentar de modo evidente que os seguros comercializados eram da Caixa Seguradora, não pretendendo a plataforma se passar por empresa autônoma. Comparando o conteúdo do site com as imagens da plataforma apresentadas na petição inicial, ele constatou a mudança de teor da publicidade divulgada, assim como não mais haver a propaganda de “abolição” do corretor de seguros. Com a decisão, as atividades da Youse foram retomadas.
A FENACOR impetrou ainda recurso para reformar a decisão de reconsideração da liminar. O relator Alcides Martins Ribeiro Filho do Tribunal Regional Federal da 2ª Região considerou que a página da Youse dispunha claramente ao consumidor a sua relação com a Caixa Seguradora e considerou que não fora provado que a Youse seria uma empresa autônoma para exigir-lhe registro junto à SUSEP. Concluiu também que o fato de existir processo administrativo junto à SUSEP para a autorização ao exercício de atividade da plataforma digital demonstra apenas um projeto futuro da empresa, e não uma burla à legislação. Negou provimento ao agravo de instrumento por não identificar flagrante ilegalidade ou abuso de poder que justificasse a alteração da decisão. Tais considerações permitiram a continuação da prestação de serviço da YOUSE até o presente momento.
O que esses casos nos mostram?
Nos dois primeiros casos tratados, das aplicações Lulu e Consultasocio.com, a justiça não determinou bloqueio integral das aplicações (afetando todas as suas funcionalidades e usuários), apenas de certos perfis e páginas. Por essa razão eles não foram catalogados aqui no bloqueios.info. No caso Youse, por sua vez, apesar de ter havido decisão pelo “bloqueio” completo da plataforma, ela foi destinada diretamente à empresa, sem a necessidade de utilização de um intermediário.
Ainda assim, todas essas disputas no Judiciário têm sua importância para a temática de bloqueios. Eles demonstram a possibilidade de a Justiça decretar bloqueios específicos: a conteúdo certo, usuário ou a ferramentas e atividades específicas, mas não bloqueando um serviço geral de forma indiscriminada. Também mostram que não necessariamente bloqueios precisam envolver intermediários – a própria empresa pode ser alvo de ação que a obrigue a encerrar suas atividades diretamente e obedecê-la; quando se recorre a atores intermediários (lojas de apps e provedores de internet) para concretizar bloqueios, normalmente há outros complicadores em jogo (questões de jurisdição, por exemplo).
Há uma complexidade enorme por trás de bloqueios, seja de que tipo for. A discussão sobre a legalidade de cada um deles (e suas fundamentações) deve estar atenta a essas particularidades.